domingo, setembro 04, 2005

O limite entre o normal e o bizarro

Com um forte estalo, de súbito, fechara a porta da van que parecia apenas a sua espera.
Cerrara os olhos como forma de ajuda para que a viagem até sua casa não fosse tão longa.
Lembrara-se de como havia chegado até ali. Recebera uns diferentes recibos de pagamento de passagem de um garoto. Um garoto pequeno demais para estudar na universidade. Estranho demais para pertencer a esse mundo – pensou, lembrando-se dos seus enormes olhos tão desproporcionais ao rosto fino e alongado do garoto. Não questionara a proveniência do vale-transporte, pois aquelas vans eram bastantes conhecidas dos alunos que se incomodavam de sempre andar naqueles ônibus superlotados.
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Tentava movimentar-se para passar a roleta daquele ônibus que a levara para a universidade naquela tarde. Tinha sérias dúvidas se chegaria do mesmo tamanho para a aula. Sugeriu ao cobrador que deveria haver poltronas do lado de fora do ônibus. Infelizmente, o homem justificou todas as impossibilidades para se aplicar a sua idéia. A garota falara em tom sério, contudo os mais perspicazes sabiam que aquela era sua maneira de contar piadas. Uma ótima maneira de conhecer as pessoas – pensava. A maneira como as pessoas reagem a uma piada não declarada mostrava o quanto eram atentas. Sentia-se muito constrangida quando alguém fazia observações desagradáveis, rindo, esperando que todos estivessem de acordo. Pelo menos não expunha as pessoas a tal indelicadeza. Esperava que da próxima vez o cobrador a compreendesse.
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Lentamente ia abrindo aqueles olhos negros para observar aquele caminho já conhecido. Tudo estava estranhamente silencioso. Um silêncio quase sepulcral. Porém não tardara a entender o motivo.
Ao olhar para o banco onde deveria estar o motorista encontrou o lugar vazio, assim como todo o resto. Custava a acreditar na realidade da cena que presenciava. Estava sozinha. E dessa vez não era como das outras vezes. Teve que admitir que dessa vez a solidão a incomodava.
Ao mesmo tempo em que surgiam perguntas sobre aquela situação que beirava a surrealidade, pensava na maneira mais eficiente de agir. Seria esse o novo conceito de piloto automático? Aliás, nunca entendera de termos automobilísticos, mas isso não fazia tanta falta. Antes não fazia falta, mas quando se está em um carro que anda sozinho, saber o significado da expressão piloto automático fazia a diferença.
Um sorriso nervoso surgiu em seus lábios quando seu olhar passou pelos botões Pause e Stop do som. Por um breve momento acreditara que estava lidando em um daqueles videogames que costumava passar tardes inteiras jogando. Ok, – pensou, tentando se manter calma – isso não é um videogame e meu pai não está aqui para dirigir.. Aliás, porque ele nunca a ensinara a dirigir? Por que sempre tentou ensinar a sua irmã e não a ela? Mas sabia que aquela era a hora menos apropriada para sentir raiva de seu pai.
Parecia que estava tomando consciência da situação em que se metera. Voltou a perceber o mundo a sua volta, assim como a buzina do Fox vermelho que acabara de passar na direção contrária no lado oposto da pista. É, parece que o piloto automático não tem muita noção de esquerda, direita e centro da pista. Estamos no meio da pista! – pensou completamente exasperada.
Pulou para o banco do motorista, e tentou levar o carro para a direita. Não, não, no acostamento não. Era quase como se ela quisesse que o carro obedecesse ao seu pensamento e não ao volante. Não tinha a mínima noção de equilíbrio, por isso virou o carro para a esquerda. Para a esquerda demais! Quase bateu no carro que passava ao lado.
Conseguiu manter uma linda paralela a listra do acostamento. Parecia que ia se estabelecer um certo equilíbrio. Por alguns segundos apenas! Uma imensa descida, aliás, íngreme até demais. Pensou se deveria mudar de marcha; o carro parecia solto demais, quase fora de seu controle.
O céu era um azul límpido, as poucas nuvens brancas serviam apenas para quebrar aquele azul monótono. A garota pensou se essa seria a última vez que olharia para o céu.
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Sentia o vento cortar sua face e sua cabeça ser puxada para trás como quase que arrancada de seu pescoço. Aquela não era a maior montanha-russa do parque, mas precisava ir em todas. Estava no Parque de la Costa em Buenos Aires, o maior parque de diversões da Argentina, deveria aproveitar todos os brinquedos que desejasse ir. Aproveitar tudo ao máximo!
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Olhou a estrada, aquela descida era pior do que qualquer montanha-russa que já tivesse ido, não agüentaria. E não conseguiria manter o controle do carro. Só o que pode pensar foi em frear o carro. Acelerou! Continuou acelerando até perceber que aquele não era o pedal certo.
Naquele momento, viu em sua cabeça uma cena que parecia incrivelmente real. Seu colega, que havia lhe dado carona no dia anterior, dizendo – Que barra, perder uma filha com essa idade...
Havia mais duas tentativas. Segundo Murphy a garota só acertaria o freio na terceira, mas dessa vez seus cálculos estavam errados. Ela freou o carro logo que a descida estava se terminando.
Escutou barulhos de ferros se retorcendo e de repente se viu fora do carro sem se lembrar de ter saído. Ótimo, aquele era o final da estrada, chegava ao perímetro urbano.
Viu-se dentro de uma loja de mármores que nunca havia reparado antes. Devia ser mais um daqueles estabelecimentos da entrada da cidade. Estava quase que caída, com os joelhos flexionados, meio atirada no chão. A sensação gelada da mármore diminuía a dor que sentia em seu corpo.
No meio de tantas mostras de mármore nunca seria vista, pensou. Vendo-a se levantar, a atendente da loja veio falar:
- Precisa de ajuda? – perguntou com um jeito calmo demais para a cena que estava presenciando.
- Há-há! Todo mundo acha que eu morri, acredita? – não sabia de onde houvera tirado que todo mundo achava que ela tinha morrido, as palavras simplesmente escaparam-lhe à boca.
A atendente a estudou, com um olhar como se estivesse realmente avaliando a possibilidade:
- A julgar pela sua cor.... – disse a atendente dando uma breve pausa.
O que? Ela realmente está me respondendo? Ela deveria só rir! Essa era mais uma daquelas piadas que ela contava em tom sério para que as pessoas rissem.
- ....e pelas formas de seu rosto...
Ela não podia estar mesmo morta. Seria mesmo assim? Imaginou-se em uma sessão mediúnica em que um coordenador sem o mínimo tato a contaria que havia desencarnado. Por isso tanta gente morria e não percebia? Mas não se lembrava do momento certo em que teria morrido. Se é que ela havia morrido. Aliás, aquilo nem estava sendo levado em consideração... Era apenas uma piada!
A garota agora se virara para a porta a sua esquerda onde havia um grande espelho. Sabia que aquelas suas vestes negras contratavam com a palidez de seu rosto, porém aquilo nunca parecera tão fúnebre. Fúnebre. Essa palavra nunca lhe parecera tão depreciativa quanto naquele momento. Porém não era nem a palidez habitual de seu rosto nem o vazio de seu profundo olhar que a assustara. Seus olhos se fixaram no lado esquerdo do seu rosto.
Abaixo do seu olho esquerdo até o colo estendia-se um inchaço de procedência inexplicável. Tudo parecia rodar a sua volta, seus joelhos dobravam-se como se não respondessem mais as suas ordens; sentia uma dormência crescente no lado do rosto.
De longe vinha um leve barulho que a fizera despertar. As correntinhas das persianas de seu quarto batiam com a força do vento que entrava pela janela entreaberta. Um lado de seu rosto parecia relutar a voltar a vida devido ao conforto do travesseiro. Um leve brilho do sol entrava pelo quarto como se quisesse varrer a escuridão de uma noite que merecia ser esquecida.
A garota ficou por vários minutos sem se mover, apenas refletindo o que teria sido aquela terrível lembrança, se haveria algum significado para que ela tivesse ocorrido.
Um sonho real demais para ser esquecido.


Liége Jorgens